Burguesia portuguesa


É raro ter orgulho de sentir-me português. Às vezes sinto-o deambulando num forte da raia, lembrando o preço pago. Às vezes nas luzes peculiares de um recanto, de uma frase, de uma musicalidade. Às vezes por nostalgia de um outro eu que, muito mais jovem, tinha pelo país uma crença. Mas a maior parte das vezes é o orgulho por ter nascido numa classe que se sentia portuguesa porque, com ser portuguesa, aspirava a uma certa universalidade de valores; uma classe burguesa que era nacional como eram nacionais todas as burguesias do mundo, sendo que isso as assemelhava; uma classe que viajava em livros ou em paquetes para se confrontar com o mundo e se consolidar no seu casulo indígena, aprendendo esforçadamente a reconciliar-se com a dádiva de valores que herdara sem esforço.
E no entanto, portuguesa, única, irrepetível, vagamente indefinível, desconcertante na sua idiossincrasia. Tenho orgulho de ter visto uma burguesia espraiar pelo país este paradoxo singular de se ser temente a Deus e se comprazer e auto-flagelar na leitura do Eça. Uma parte dessa geração já morreu; a outra parte empobrece velozmente e soluça na sombra a sua impotência. Tenho orgulho de ter visto essa geração no seu apogeu, era eu menino. Entristece-me ver o país que a desmereceu e se arrasta descaracterizado, sem sequer um paradoxo a dar-lhe alma.

Sem comentários:

Enviar um comentário