Há qualquer coisa de perturbador nas curtas leituras que fiz de Heidegger, lembrei-me hoje por causa do MALOMIL.
Li-o sempre em tradução, para não me deixar trair pela incipiente relação com a semântica do original.
E curioso, sempre o achei “desfocado”, ou seja, incapaz de traçar uma fronteira entre o uso designativo e o uso evocativo da linguagem – gerando com isso deslizamentos arbitrários que o leitor acompanha à sua própria custa e assumindo a totalidade do risco.
Achei-o também pouco problematizador, preso de absolutismos terminológicos e de uma dogmática que, perdido o tal carácter referencial e designativo dos termos, se converte numa prisão essencialista, um círculo fechado de truísmos, um incessante mantra de convenções acríticas e de alusões esotéricas, um jogo cifrado.
Foi-me fácil visualizá-lo nas suas deambulações silvestres, gesticulando uma espécie de misantropia catatónica que parece venerável a quem perdeu o norte, o sentido de missão ou de relevância e não quer mais concentrar-se no que deveras acontece – mas não convence quem se deixa interpelar pela vida activa e pelo amor do mundo, as escapatórias de Hannah Arendt dessa masmorra intelectual.
Curiosamente também, a interpretação que dele faz Richard Rorty faz todo o sentido – faz um tremendo sentido, na medida em que ironicamente reduz Heidegger a um pródromo de um estado final de dissolução do objecto próprio da filosofia, um estado de consumação última no qual a filosofia aprende a sua irrelevância civilizacional e tenta reabilitar-se como uma espécie de alquimia literária.
Mas Rorty faz o que Sarte já tinha feito: mastiga Heidegger e digere o quantum satis para transcendê-lo – no primeiro caso aumentando a luminosidade, no caso do existencialista embrenhando-se ainda mais na paródia solipsista da tradição rousseauniana.
O que há de perturbador é que lê-lo directamente tem o efeito de se olhar para a Hidra; há que lê-lo obliquamente, em segunda mão, domado, depurado, “ad usum delphini”.
Não admira portanto que tantos tenham olhado para o górgon da Floresta Negra e o tenham venerado naquilo que ele tinha de mais anedótico e epidérmico – o preciso oposto do que ele teria pretendido com as suas arrogantes asserções “metafísicas”.
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