Andamos cegos e surdos


Eu tenderia a definir-me a mim mesmo como um escapista, na tradição da velha terapia epicurista-céptica. Mas às vezes deixo-me apanhar pela minha consciência cristã, com laivos de panteísmo, e extasio-me na contemplação da natureza que Alguém criou, que não eu. Inverto a definição e interrogo-me se escapismo não é andarmos a gastar a vida nesta servidão às convenções sociais, às neuroses colectivas, à distribuição totalitária dos papéis e das máscaras; se escapismo não é esta privação do contacto com a nossa primeira natureza, com esse éden que está sempre a um pecado original de distância. Animo-me com a dúvida. Talvez o escapismo não seja afinal senão aquele pequeno instante homeopático de lucidez que ainda me permite não sucumbir à surdez e à cegueira das nossas convenções "civilizacionais" e ao desespero da nossa natureza decaída, e por momentos permite voltar a ser aquele infantil nativo do planeta que ainda consegue imaginar brevíssimas comunhões com a Criação, e soluçados diálogos com o Criador, como se não tivesse sido expulso do Paraíso.

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