Eu quero o meu 25 de Abril


Estive ontem na missa do 7º dia de José Hermano Saraiva, e por momentos pus-me a pensar nas ironias do destino. Tudo parecia destinado a uma sucessão de cargos políticos num crescendo, a submergi-lo na rotina, mais ou menos justificada e contida, do serviço à pátria; terminaria como um homem extremamente talentoso a escrever memórias pardacentas no ocaso da vida, uma vida de gloríolas e avanços e recuos de milímetros no proveito e edificação colectivos.
Veio o 25 de Abril e os que queriam persegui-lo e prejudicá-lo expulsando-o de tudo o que era lado não faziam a mais remota ideia de que, ironicamente, estavam a abrir-lhe o tempo para o cultivo e florescimento da mais rematada das suas vocações. O 25 de Abril pensou ter vazado sobre ele a lia da ignomínia e o ferrete do banimento; ao invés, aliviou-o da canga dos deveres oficiais e devolveu-lhe o tesouro da liberdade individual; mais, deu-lhe gratuitamente a chave de um porto abrigado a partir do qual lhe foi permitido recriar-se e transcender-se. O 25 de Abril proporcionou-lhe, inadvertidamente, um novo Vale de Lobos a ser habitado por um novo Herculano; e deu-lhe tempo para tentar sê-lo deveras.
Não posso comparar-me; mas quem sabe – pensei – se uma libertação súbita e imposta não iria permitir aplicar os meus pobres talentos em vias mais gratificantes e úteis? Se ela não me permitiria mais serenas e fundas sondagens sobre o sentido da vida, menos alienação no meu esforço, uma redescoberta de um outro "eu" mais disponível, mais criativo, mais estimável?
Também eu gostaria que me fosse concedida a oportunidade de reorientar o que me resta de tempo para a prossecução de fins que os meus hábitos me têm obnubilado, umas vezes, e me têm recusado, outras. Talvez valesse a pena. Falta ser-me propiciada a ocasião.

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