Às vezes custa a acreditar a distância que este corpo cansado já atravessou – o que estes olhos, ouvidos, olfacto, tacto, já experimentaram, já absorveram, e aquilo que, absorvendo, esqueceram. Às vezes o mesmo bolo embebido com muito creme de cobertura parece assaltar-nos o paladar e forçar-nos a salivar pavlovianamente, como outrora na espera pelo soprar das velas, na impaciência sôfrega dos verdes anos.
Custa a acreditar que, tudo somado, tudo ponderado e joeirado, subsista uma profunda solidão neste percurso pelo tempo, e que tenhamos que certificar aos nossos sentidos que, na persistência da memória, a variedade do que passou é deveras integrador de uma identidade, um lastro que nos prende crescentemente à Terra até que um dia desaparecemos nela. Somos ainda nós, por muito que fotografias desbotadas tentem provar-nos o contrário.
Estes olhos que recordam, esta consciência que se emociona com isso, pertenceram a um jovem que se iludiu um dia com a persistência infinita daquelas pequenas alegrias celebradas em dias em que tudo lhe parecia devido, as pessoas o tratavam com especial carinho, os amigos chilreavam sem malícia e as tardes quentes se rematavam com um soprar de velas e uma pequena orgia de bolo e creme, correria e lambuzice.
Pavloviana, a saliva recobre o lado mais persistente da memória dessas tardes imaculadas e emotivas, de um gozo sem distracções, de sentimentos sem divisões, de sorrisos afogueados e de sonhos inocentes. A mão, exploradora, tacteia o muro gélido do passado até descobrir uma fenda e, nela, uma mão estendida a lembrar-nos o que fomos e no que nos tornámos – o fantasma de aniversários passados.
Às vezes nada parece real, de tão improvável que foi antes de o termos vivido. Hoje sopramos mais uma vela, um bocadinho arrepiados com a percepção da distância percorrida. E ainda somos nós, sobreviventes de nós mesmos, daquilo que fomos descartando, por troca com o que fomos colhendo, nesta longa travessia.
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