Ao terror da morte juntara-se já, há muito, o terror de ter Judas por biógrafo.
Mais recentemente vejo acrescentado outro, o de se ser alvo de ostentações de familiaridade que a morte já não permite desmentir.
Hoje calhou a Clara Ferreira Alves, fazendo com a memória de Miguel Portas o que há anos víramos todos, incrédulos (a sensatez ainda tinha praticantes), o Prof. Espada fazer com a memória de Karl R. Popper.
Reli algumas passagens porque não queria acreditar que pudesse entrar-se tanto na privacidade do defunto, ou que mesmo a amargura, por mais genuína, não sentisse os rebates de pudor que a amizade impõe.
Tudo isso apouca, não tanto o morto que passou a inocente perpétuo, mas aqueles que pavoneiam os seus currículos de intimidade. Mortos há que merecem tantos testemunhos de familiaridade póstuma que me ocorre sobre o convívio atribuído ao morto a observação de Eça sobre o comércio de relíquias, de que somados todos os pedaços do Santo Lenho teríamos, não a cruz original, mas uma floresta.
Cada um fantasia a sua familiaridade como pode, e não há dúvida de que a banalização tudo parece autorizar. O problema é que há distâncias e demarcações e redutos que levam uma vida inteira a cultivar. Num instante morre-se e também isso se esfuma.
Terrível.
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