À beira do Tejo


Um pouco como se fossem sinos tocando a rebate latejaram-me as têmporas com a digestão daquelas palavras difíceis: um dos homens mais displicentes que alguma vez conheci, um cabotino genial, meticulosamente caldeado na flânerie intelectual, colapsou à minha frente.
Estávamos à espera de uma reunião e ele segredou-me o cancro, galopante, implacável; a voz tornou-se mais cava, mais arrastada; começou a falar-me dos mártires do Egipto na obra de Eusébio de Cesareia, da chama interior que levava à resignação diante das feras, da consolação triste que o martírio é capaz de conferir aos eleitos.
(tudo muito xiita, pensei, quando me recompus)
Não tenho nenhum balcão de bar partilhado para evocar cumplicidades de décadas, nem ele morreu, nem a volatilidade das suas emoções lhe consentiu que o momento de fraqueza perdurasse. Se ele soçobrar e as feras do Egipto regressarem, mais insidiosas desta feita porque mais desleais, nem sei se o acompanharei ou se permitirei que transpareça, no pudor que a dor impõe aos que sofrem menos do que aqueles que amam, uma familiaridade que verdadeiramente nunca existiu, por muito que nos tenhamos conhecido e estimado.
(desconfiado que sou, fui ver em Eusébio de Cesareia se estavam lá os exemplos que ele transmitira de memória; estavam, e isso fez-me de novo latejar as têmporas, reflectindo o arrependimento pela desconfiança)
A alegoria de ler Eusébio de Cesareia é transparente – embora talvez estivesse a imaginá-lo, dandy intelectual que é, a ler os Diálogos dos Mortos de Luciano, ou a respectiva transposição vicentina.
Ou talvez isso seja demasiado rebaldeiro e escapista para quem, com toda a potência intelectual, é capaz de agonizar de simples empatia com o sofrimento antecipado.

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