Reflexão inconformista


Hoje citei em público Bernanos, numa passagem incaracteristicamente inócua de Sous le Soleil de Satan. Alguns mais velhinhos significaram com o sorriso a sua aprovação, e eu pus-me mentalmente a enumerar convergências e divergências da minha sensibilidade cristã face à de Bernanos – a minha muito mais austera e condescendente, a dele mais sombria e arrebatada.
Curiosamente, pouco depois as mesmas pessoas, e outras mais, aderiam a uma visão solidarista do Direito, enfatizando o papel que a solidariedade humana deve ter e não hesitando em colocar o Direito ao serviço desse valor. Os antípodas de Bernanos, sempre fascinado com a singularidade da danação da natureza humana, com a incomunicabilidade da corrosão do pecado, com a avidez mercenária da salvação convertida em egoísmo e destino pessoal, com uma certa surdez existencial que faz parte da nossa condição decaída: tudo abertamente centrífugo, anti-gregário.
Por mim, não ligo a solidariedade à natureza humana; ligo-a uma intencionalidade racional que recobre de valores uma necessidade de pacificação e reciprocidade. Creio que outro artifício social como é o Direito não deve envolver-se num reforço directo dessa intencionalidade, sob pena de fragilizá-la, retirando-lhe a espontaneidade. E além disso, mais moderadamente, partilho de uma visão sombria, ou pelo menos contrastada, caravaggiana, da natureza humana – algo de uma matriz augustiniana-jansenista, que vê a existência afirmar-se tanto na solidão como na socialidade, que vê tanto valor na ajuda como na recusa, dependendo dos momentos, mas que reconhece, com Bernanos, que há coisas em cada um que verdadeiramente não conseguem sair de um determinado círculo:
- seja, como em Bernanos, porque é nesse canteiro que se joga a dialéctica com o Absoluto;
- seja, na minha visão mais prosaica, porque sermos para os outros, sermos solidários com os outros – e em especial no que respeita aos que não amamos – é somente uma faceta, uma parcela minoritária, da experiência relevante que é a nossa vida.

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