Guerra Guarani


Vinha a ouvir a versão de Yo-Yo Ma do "Gabriel's Oboe" de Ennio Morricone e lembrei-me do filme dos jesuítas entre os Guaranis, e as imagens de Iguaçú, e a grandiosa simplicidade do enredo, e o imbricado da vegetação e dos tijolos das "Reduções" paraguaias - e de como me comovi a primeira vez que o vi, quando por coincidência estudava e ensinava a Guerra Guarani e o arco que vai do Tratado de Madrid ao Tratado do Pardo.
Pensei na heroicidade daqueles jesuítas, vítimas distantes de uma intriga internacional e da realpolitik do concerto das nações; pensei na infantilidade daqueles pobres guaranis; pensei no Criador, sondando a profundidade dos corações de vencidos e vencedores, dorido pela exuberante degeneração dos frutos do livre-arbítrio.
Há menos de um ano passei pela primeira vez na região. Deixei-me esmagar pelo ribombar das cataratas, um estampido tão forte, tão avassalador, tão literalmente torrencial, que tive dificuldade de me focar num pensamento evocativo que queria reservar para aquele momento. Imaginei um jesuíta oferecendo os braços em abrigo de um grupo de índios, sabendo que o gesto aceleraria a destruição da sua própria Ordem. Lembrei-me da posição do Padre António Vieira, ensinando que a pior das injustiças é a privação de liberdade daqueles que nasceram livres; lembrei-me das suas exortações à coragem ("Mais dá quem despreza o que espera, que quem dá o que possui", ou "Queremos ir ao Céu, mas não queremos ir por onde se vai para o Céu").
Era tarde e não pude ir ao lado argentino, reputado como o mais belo no panorama de Iguaçú. O Sol declinava quando reconstruí mentalmente uma frase de George Bernanos, no Sous le Soleil de Satan, definindo a santidade como a resposta a um apelo ascensional em que tudo se joga e tudo pode perder-se, para lá do alcance de qualquer ajuda humana. Era esse o pensamento evocativo que eu buscava, e significativamente ele brotou numa paráfrase pouco rigorosa.
Percebi assim todo o alcance simbólico do crucificado caindo das cataratas, primeiro de costas e depois de cabeça para baixo, como o apóstolo São Pedro – uma das imagens mais fortes do filme.
Houve, há, nessa virtude heróica algo de aceitação, e algo de resignação, ao desígnio de forças sobre-humanas, uma consumação ao mesmo tempo terrífica e exaltante, em especial quando desliza e escapa do alcance da vontade humana. Algo que interpela, sacode, o nosso refastelamento burguês, reduzindo-nos à nossa insignificância moral.

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