Recomeçar

Têm-me perguntado: porquê começar de novo, se precisamente V. é um dos que tem denunciado essa perversa vontade reinstauradora, reformista, saneadora – que julga só poder encontrar alento na tábua-rasa e na ilusão da novidade?
A resposta é simples: essa vontade só é perversa se procura impor-se aos outros, se lhes desconsidera a história pessoal, o investimento no carácter, a profundidade sedimentada; auto-imposta, essa vontade transforma-se num banho lustral de inocência, confere uma nova oportunidade, liberta da canga do passado quando ele se torna demasiado presente e paralisante.
É uma forma de renúncia, e a renúncia quando é livre tende a permitir um passo na direcção da sabedoria. A permitir somente, sublinhe-se, porque também pode converter-se num escapismo lábil e numa ilusão irresponsabilizadora.
Talvez seja por isso que o determinismo, sempre ardiloso, não consente retrocessos fácticos; mas talvez seja também por isso que a natureza humana, mais ardilosa ainda do que o determinismo, nos dotou da capacidade de imaginarmos novas alvoradas.
A repristinação, a renovação absoluta, pode não passar de uma ilusão; mas pode não ser nem mais nem menos ilusória do que a liberdade pessoal que o determinismo nos consente.

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