Incipit


Uma das coisas que mais me impressionou na leitura das primeiras páginas de À la Recherche, de Proust, é a consciência de que a infância é repleta de caminhos que divergem, de dicotomias fortes, de opções claras - caminhos que só o tempo confunde e consegue reconciliar (quando consegue).
Na minha infância há muitos contrastes desses, e de alguns irei dando conta ao longo do exercício reflexivo que me proponho empreender - quem sabe, na demanda da limpidez que aquela "pulsão maniqueísta" assegurava e que as reconciliações (e sínteses, e "vias médias") tendem a comprometer.
Um dos mais notáveis contrastes, porque porventura o mais fácil, é aquele que no meu espírito opunha Sul e Norte na Ericeira.
Havia, e há, uma estrada para Sul e uma para Norte, e ruas paralelas à estrada, num declive até ao mar.
A estrada do Sul foi a que sempre preferi, o meu caminho de Guermantes, mais reconfortante do que misterioso, em meandros ocre a caminho do Lisandro; na minha adolescência agudizou-se um sentido de "pertença" a esses caminhos do Sul, um vago elitismo que se apegava à erosão da praia e nela se refugiava o mais Sul possível. O Sul prometia.
Para Norte o mistério adensava-se, havia algo de agreste e desafiante em ruas estreitas, ventosas, decadentes e fétidas, desembocando em rochas abandonadas, em rebentações de sépia e em matilhas de cães. Era o lado Méséglise, mais fechado do que evocativo; um pólo que não assegurava retorno, um lado a evitar.
Só muito mais tarde uma certa reabilitação objectiva do Norte, a somar a uma "gentrification" daquela arquitectura "vernacular", ditaram novas "pertenças" ao lado que, apesar de tudo, deixando de ser tão fétido e tão canino, soube todavia preservar melhor a sua índole selvagem. Podia passear-se lá em razoável segurança numa daquelas inúmeras manhãs cinzentas de que se compunha o verão atlântico.
A minha vida adulta tem sido uma lenta, mas firme, reconciliação com o Norte da Ericeira, e a descoberta, nele, de um eu que o meu outro eu (o da infância) não julgava possível, de alguém que gosta de nortada, de praias semi-desertas e de ausência de confortos convencionais.
No Norte da Ericeira redescobri-me, e logo quando nele buscava um eu perdido, que afinal essa busca confirmou que tinha sido definitivamente atraiçoado. Há nisto um simbolismo que me inquieta, o mesmo que me inquieta na leitura das primeiras páginas de Proust. Talvez esteja em causa a "hubris" de quem remexe no passado na vã esperança de nele descobrir ainda coisas vivas. Ou talvez seja o Norte o único lado que me consente uma aproximação àquele paraíso infantil da polarização e dos contrastes, sem me magoar com lembranças demasiado fortes das promessas incumpridas a Sul. Ou pode ser mesmo que eu ande simplesmente em busca do paraíso perdido das certezas dicotómicas, de um mundo a dois caminhos. Sinceramente não sei.
Deixemos, portanto, para trás o caminho de Guermantes; substituamos a exiguidade simbólica do riacho de Combray (Vivonne) pela vastidão do oceano do lado de Milreu (Mil Regos) e Ribeira d'Ilhas; e comecemos, de cara destapada desta feita - para saborear o vento -, o caminho para Norte. Venham comigo.

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