Não sou entendido de vinhos, raramente bebo e tenho medo dos efeitos. Mas quando acontece beber, peço apenas uma coisa, que o vinho saiba a vinho.
Estou portanto desfasado do marketing criativo e da conversa elegante que confluíram nos últimos decénios para formarem a "Escola Sinestésica do Vinho".
Agora até nos folhetos dos supermercados aparecem "notas de prova" que convencem o íncola ávido de que a ingestão do vinho traz uma sugestão de sabor a frutos vermelhos, a marmelada, a cítricos, a chocolate – e sabe-se lá que mais. Acredito até que alguns dos sabores lá estão mesmo (não custa imaginar o que deitam nas cubas inoxidáveis para manipular os sabores e as idades aparentes), mas o ponto não é esse: qual é o gozo de se "descobrir" no vinho algo que não é vinho? Será o vinho somente um veículo insonso e neutro para acesso a outros sabores mais "autênticos"? Ou será antes o ponto focal exaltado dos nossos melhores esforços analíticos?
(enquanto bochecha, visualiza-se o degustador a aplicar no líquido a potência analítica com que Jorge de Sena se atirava a um soneto de Camões)
Na verdade, talvez tenhamos aqui mais um afloramento do "síndrome Disneylândia", a demanda de pequenos gozos superficiais que, compostos, substituiriam a experiência mais imediata e mais autêntica das coisas que se pretende que esses mesmos gozos evoquem
(apertem o cinto, e cá vamos provar o vinho "Montanha Mágica"; um prémio para aquele que acertar em mais pequenos indícios deixados ao longo do percurso; ganha aquele que menos referir o gozo simples da montanha russa)
Pão, pão, queijo, queijo: não um pão que saiba a queijo (sorry, Minas!) nem um queijo que saiba a pão. Sou ainda dos que gostam da batata que sabe a batata, não da que sabe a perna de frango de churrasco. Não sei por que haveria de ser de outro modo com o vinho.
Deviam ficar reservados às palavras os mais poderosos efeitos evocativos. Atribuir ao paladar e à passagem de um líquido esse mesmo poder só me sugere entorpecimento das palavras, embaciamento da visão e empastelamento da língua, logo uma derrota da razão: talvez que a sinestesia não seja um objectivo, afinal, mas uma mera consequência.
Sem comentários:
Enviar um comentário