Apagou-se há uns dias o último resquício da minha vida simples. Permaneci por muito tempo com esse flanco exposto, crendo inocentemente que ele era invulnerável: não era.
Rendo-me assim à evidência de que todas as filosofias do mundo não nos fornecem a carapaça para as adversidades que vão pontuando a nossa vida adulta: ainda é preciso ter sorte, muita sorte.
Céleste Albaret relata, em várias fontes, o episódio do encontro do seu amo, Marcel Proust, com uma horrível Parca que, horas antes, vem anunciar-lhe o desenlace – sobressaltando a pieguice asmática com que ele próprio perspectivava o seu trépas.
É preciso ter sorte.
Numa reescritura recente a Parca reapareceu, a anunciar-se, mas a vítima, na sua inocência, pensou não ser mais do que um pesadelo, e, sem planos para adeuses encenados ou para pompes funèbres de estilo, esqueceu o sobressalto e viveu alegre o seu último dia.
Há aqui uma lição qualquer nessa bizarra e tétrica revelação, e receio não conseguir captá-la. Talvez seja o ensinamento de que a inocência é a nossa única redenção, pelo que deveríamos poder nortear por ela a vida.
Se é isso, essa possibilidade é-me negada no mesmo momento em que a descubro, e precisamente porque a descubro. Ou talvez a revelação consista na importância de se ter sorte, ou sobretudo a sorte de se desconhecer que se tem sorte ou de ignorar que isso sequer seja importante.
Mas, Querido Amigo, talvez os lutos sejam a suprema e mais sublime forma de perceber que a Redenção passa pelo Sofrimento...
ResponderEliminarChesterton dizia que «a Odisseia é grande porque toda a vida é uma Viagem, a Iliada porque toda a vida é uma Batalha e o Livro de Job porque toda a vida é um enigma». Mas a Dor da perda Doutro é a única que conta, as demais são reacções ao chicote.
Citando de memória o Seu Querido Racine, mesmo difixilmente suportando os males que me afligem, prefiro sofrê-los a merecê-los...
Forte abraço