O demónio somos nós todos


O "espírito imundo" responde, à interpelação de Jesus, "Legião é o meu nome, porque somos muitos" (Marcos 5:9), ou "Legião (porque tinham entrado nele muitos demónios)" (Lucas 8:30). E a Legião, exorcisada, apodera-se de uma vara de porcos, na terra dos gerasenos (ou gadarenos), defronte da Galileia. Os porcos suicidam-se, ilustrando o triunfo do bem e o trânsito do mal para uma natureza inferior e conspurcada, em direcção à sua derrota e eliminação.
Na sua homilia vigésima-oitava sobre o Evangelho segundo São Mateus, São João Crisóstomo esclarecerá que se trata de uma metáfora sobre a dupla natureza humana, representando os porcos a natureza bestial do homem, na qual o Diabo se insinua para nela plantar as sementes do fim da espécie. Em contraponto, Tertuliano (em Adversus Marcionem) e São Jerónimo (nos seus Comentários sobre o Evangelho segundo São Mateus) enaltecem o poder redentor de Cristo sobre as Legiões do Mal.
Em Twelfth Night o puritano e escarnecido Malvolio pode começar a ser suspeito de alguma perturbação, mas Sir Toby Belch observa: "Which way is he, in the name of sanctity? If all / the devils of hell be drawn in little, and Legion / himself possessed him, yet I'll speak to him." E no Merchant of Venice o bardo de Stratford evoca o episódio bíblico, fazendo Shylock responder a Bassanio: "Yes, to smell pork; to eat of the habitation which / your prophet the Nazarite conjured the devil into."
A vergonha da nossa natureza animal (da nossa primeira natureza, da nossa natureza determinista e criada) faz-nos procurarmos a sua negação ou a sua transcendência. Colocamo-nos no zénite da criação, no ápice da Grande Cadeia do Ser - por vaidade, o que equivale a dizer, por medo de que o abandono ao vector descendente da nossa alma platónica nos condene irreversivelmente à condição de alimárias, de brutos.
A doutrina, como na anedota, dividir-se-á, no caso entre optimistas e pessimistas antropológicos:
a) de um lado, Milton seguirá a linha de Tertuliano, enaltecendo o poder do exorcismo: "Hereafter learn with awe / To dread the Son of God. He, all unarmed, / Shall chase thee, with the terror of his voice, / From thy demoniac holds, possession foul - / Thee and thy legions; yelling they shall fly, / And beg to hide them in a herd of swine, / Lest he command them down into the Deep, / Bound, and to torment sent before their time.  / Hail, Son of the Most High, heir of both Worlds, / Queller of Satan!" (Paradise Regained)
b) de outro lado, lembrando as aleivosias de Circe e a hubris dos navegadores em demanda de Ítaca, o texto criptografado de James Joyce remeterá veladamente para a visão de João Cristóstomo sobre o episódio bíblico: "STEPHEN Dance of death. (Bang fresh barang bang of lacquey's bell, horse, nag, steer piglings, Conmee on Christass lame crutch and leg sailor in cockboat armfolded ropepulling hitching stamp hornpipe' through and through, Baraabum! On nags, hogs, bellhorses, Gadarene swine, Corny in coffin. Steel shark stone one handled Nelson, two trickies Frauenzimmer plumstained from pram falling bawling. Gum, he's a champion. Fuseblue peer from barrel rev. evensong love on hackney jaunt Blazes blind coddoubled bicyclers Dilly with snowcake no fancy clothes. Then in last wiswitchback lumbering up and down bump mash tub sort of viceroy and reine relish for tublumber bumpshire rose. Baraabum!)"   (Ulysses, episódio de Circe)
Oscilo constantemente; hoje sinto-me mais próximo da visão pessimista, auscultando-me a mim mesmo.

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