A história das ideias é uma história de apropriação. Uma pessoa origina uma torrente de transmissão e de imitação e está lançada uma ideia, a ideia entra no caudal da apropriação pelo espaço público e não mais regressa.
Os apropriadores-portadores são os legítimos utentes dessa unidade reprodutiva, e as mutações são inevitáveis; aliás, sem essa virtualidade plástica e auto-poiética talvez a replicação fosse difícil, porque aumentaria a probabilidade de esgotamento das ideias dentro dos cérebros-hospedeiros – cada um deles podendo converter-se na sua estação terminal.
Custa às vezes assistir ao desvirtuamento das ideias, se porventura nos obstinamos em conservar uma representação anacrónica da sua primeira fonte "manadeira" (um pouco como a obstinação de tocar uma composição com instrumentos "da época"); mas o desvirtuamento é tão inevitável que talvez nem possa qualificar-se como desvirtuamento – sendo antes a própria natureza das ideias, que se metamorfoseiam mesmo nas transmissões aparentemente mais passivas e servis, as mais ostensivamente imitadoras, "miméticas".
O autor, o "manancial", nada pode fazer para evitá-lo, não obstante os esforços em contrário; e menos ainda podem fazê-lo os sucessores, por mais amantes, respeitadores e fidedignos que queiram conceber-se.
Vem isto a propósito dos inglórios esforços da filha de Ezra Pound para resgatá-lo da "apropriação fascista" (LER - curiosamente, quase o simétrico do esforço da irmã de Nietzsche para "colá-lo" ao legado nazi).
Compreendo o desespero de ver Ezra Pound convertido no "poster boy" dos neofascistas, uma comercialização que teria certamente repugnado ao próprio, não obstante terem sido as opções políticas de Ezra Pound que iniciaram essa "memética" que vem desembocar nos emblemas e nos covis neofascistas de Florença, como a CasaPound (a ironia de isto se passar em território da vanguarda do republicanismo "pocockiano" é mais uma prova dos arabescos que os "memes" descrevem na sua longa trajectória).
Mas, por uma vez ao menos, os neofascistas têm razão: o Ezra Pound que eles colocariam nas t-shirts se ele fosse tão icónico como Che Guevara é o "Ezra Pound deles", é o fruto da apropriação que as ideias do defunto Ezra Pound propiciaram, com o seu ostensivo enamoramento pelo primeiro fascismo.
Nada, e certamente não o amor familiar ou alguma norma sofisticada de direito autoral, é capaz de travar esse fluxo evolutivo. "Habent sua fata libelli"; as ideias, como os livros que as transportam, têm efectivamente o seu fado. Isso é inevitável. Como o fado.
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