Os anjos decaídos do Largo do Rato


É sabido como no século do romantismo o entrudo do Solar dos Marqueses de Viana, ao Rato, rivalizava em exuberância e fausto com o de Farrobo, às Laranjeiras. Os actuais inquilinos do Rato mantêm esse despique com laranjas – mas, mais generosos, resolveram obsequiar a urbe e o país com um entrudo permanente. Daquele albergue de Calistos Elóis de Silos e Benevides de Barbuda saíam, não há muito, os delírios do segundo aeroporto, da terceira auto-estrada até à Invicta, do TGV; hoje de lá se erguem os mais dilacerantes lamentos pelo desvario da coisa pública, tudo proferido com ar impávido e em cheiro da mais sincera inocência.
Noutros tempos, ainda pré-românticos, dali se ia pelo Salitre ou pelo Alto da Cotovia (depois Patriarcal Queimada, depois Príncipe Real) até à Praça do Verde (depois Praça da Alegria) a ver os quadrilheiros no patíbulo – um violento exercício de sobriedade cedo substituído pela amenidade marialva de feiras, toiros e Passeio Público. Hoje, como a cidade está toda ela tomada por quadrilheiros e a prevenção geral induzida pelo patíbulo foi proscrita, não mais se torna necessário, para efeitos de conduta cívica, sair dos salões do Palácio Praia e Monforte – bastando por lá fazer umas vénias às assombrações carnavalescas das almas de antanho; e continuar a bolsar palpites, com gravidade e zelo diuturno, que a credulidade popular nunca deixará de enlevar-se com as emanações de virtude saídas da respeitável mansão e com os cânticos hipnóticos entoados pelas jovens vestais que andam a ornamentá-lo.

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