O meu Comandante


Víamo-lo fugazmente na formatura, apressado, hirto à frente dos Alferes.
O frio cortante distraía-nos e animávamo-nos mutuamente com pequenos gestos de sobrevivência, com piadinhas sussurradas e nervosas, com olhares trocados entre as nuvens bovinas do nosso hálito.
Ele desaparecia e daquele imenso terreiro subíamos para as carreiras de tiro, em marchas intermináveis por locais onde tínhamos passado, havia poucas horas, vencidos e enlameados.
Todas as misérias do mundo se adensavam naqueles dias intermináveis ao ar livre, das bolhas dos pés ao bambolear acerado dos capacetes, passando por um equipamento cuja principal função parecia ser a de demonstrar-nos os limites de tolerância física ao desconforto.
Passo de corrida para lá, passo de corrida para cá, quedas na máscara, mil e uma praxes, granadas ofensivas entrecortando a sonolência, estampidos e rajadas entrecortando a cadência ofegante dos nossos corpos elásticos – e assim se compunha o nosso ritual de embrutecimento, de resignação, de medo. Nunca adormeci com tanta fome e nunca dormi tão profundamente.
O Alferes que comandava o meu pelotão era mais novo do que eu – era um homem duríssimo, de uma rigidez e falta de humor preocupantes, talvez "borderline", mas nunca vi ninguém tão obcecado com a aplicação da justiça. Um dia castigou-me por tê-lo corrigido diante de todo o pelotão (expliquei-lhe quase instintivamente, sem ponderar as consequências, que o U de "arguido" não é mudo). Uns dias depois pede-me desculpa diante do pelotão e manda-me falar com o Comandante da Companhia, o nosso Capitão – um homem do qual sabia apenas que tinha pertencido ao recentemente extinto Conselho da Revolução.
Este recebeu-me com uma formalidade que não durou mais do que uns segundos, avançando imediatamente para uma conversa sobre assuntos extramuros que durou uma boa meia hora. Nunca imaginei possível este banho de humanização e cordialidade naquele ambiente; aquela meia hora foi o raio de luz nas trevas de alguns meses de trogloditismo, e nunca mais o esqueci. A despedir-se perguntou-me o que eu pensava dos métodos do meu Alferes – creio que para me dar a entender que estava a par do incidente a da sua resolução. Respondi umas trivialidades e ele tranquilizou-me asseverando-me que o Alferes era pessoa dura mas totalmente recta, que não tínhamos nada que temer. Agradeci, e desde esse fim de tarde de Abril de 1983 que nunca mais troquei uma palavra com ele, embora à distância lhe tivesse seguido a trajectória.
Muitas manhãs ainda o vi formar fugazmente à frente da Companhia, a apresentá-la ao Comandante de Batalhão, na parada da EPI em Mafra. Depois segui a minha vida num esforço de varrer da memória tudo o que não fosse aquele breve instante de edificação humana, que não teria valido nada se não fosse o contraste com a escuridão anímica reinante à minha volta e dentro de mim.
Soube agora que morreu – o Capitão Marques Júnior, um homem bom, o meu Comandante.

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