Recreio


Às vezes arrepio-me com o sonho de que as solas dos sapatos, já gastas, deixam passar a água gelada em que involuntariamente chapinhei. Às vezes sinto ainda que fui empurrado para uma poça pela malícia de uma criança sem rosto. Outras vezes os ossos retesam-se (como se pudessem) na antecipação do frio penetrante. Ainda me consolo de sentir os pés quentes e o contraste com essa lembrança amarga pacifica-me estranhamente, como se através dela, só dela, contrabalançasse toda a carga da minha nostalgia que tende a adoçar a distância.
Em contrapartida, o meu outro inocente que deixava ensopar as solas é um eu sofrido que não tinha escudado ainda na sofisticação epicurista os males da vida, anestesiando-se num "script" de rituais que troca o encanto pelo controle e se compraz nisso. Tomara que eu tivesse permanecido nesses sobressaltos, se isso tivesse significado ter vivido de forma menos domesticada, menos sentimentalmente hipocondríaca; não teria agora uma perspectiva estruturada da minha vida como aquela que me habilita a exprimi-lo como o faço: mas teria tido o gozo (assustadiço e animalesco, admito) de uma inefabilidade que nem por isso seria menos expressiva.

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