Não ler Pascal


Num jantar melancólico com velhos colegas ocorreu-me uma tradicional observação sobre Blaise Pascal: a de ter morrido jovem de mais, sem ter chegado ao patamar no qual se dá a pacificação do amor. Jamais saberemos se essa conciliação última, se esse pináculo dialéctico, teria sido alcançado num Pascal envelhecido: ultrapassadas as lacerações passionais, apaziguado o fervor, destilado todo o sofrimento, experimentadas todas as surpresas, que teria ele pensado do restante da vida?
Entrevermos velhos rostos recobertos de um pergaminho engelhado e enquadrados de rarefeitas cãs é vagamente angustiante (como devassa do intangível tesouro das memórias) mas é também uma lição de apaziguamento e de superação: olhamos e chegam-nos ecos distantes de angústias, zangas, ciúmes, ansiedades, preconceitos, malícias, desejos, desencontros, e toda a torrente de sentimentos hipertrofiados que fazem da juventude uma passagem única, a um tempo deliciosa e perigosa. Tudo encontramos naqueles rostos, como tatuagens apagadas num palimpsesto esquecido, agora reescrito em traço mais largo e suave, um traço que superou as asperezas e os ímpetos pascalianos e se abandonou, cadenciado, à fruição do vazio outonal.
Cadenciado é a palavra, um baile de Guermantes a estadear os estragos do tempo, é certo, mas a libertar também, sublimando-os, os entraves das mágoas e dos desejos. Nessa cadência percebemos que, sem ilusões e sem inseguranças, poderíamos finalmente ser todos amigos – amigos incondicionais, pacificados, logo agora que, paradoxalmente, deixámos de ter tempo para sê-lo (devíamos ter lido Pascal na nossa juventude).

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