Os retratos a preto e branco e a sépia têm o dom de nos sugerir um mundo mais silencioso e serenado do que certamente ele foi. Revejo e organizo um arquivo familiar e o meu luto transforma-se num fascinado olhar sobre aqueles rostos incertos que fitam o futuro e ostentam a sua essencial perecibilidade – grupos inteiros de gente morta que deve ter gargalhado e sorrido e salivado e sorvido a brisa à espera do clic da câmara, e que me falaria com vivacidade se soubesse desta minha contemplação póstuma.
Se eu rasgasse os quadradinhos de papel aqueles instantes estariam irremediavelmente perdidos, um pensamento que me confere um poder demiúrgico e justiceiro. Abstenho-me de fazê-lo, e pelo contrário glorifico aquelas cristalizações inodoras do tempo, procurando atribuir a cada retratado uma dignidade esfíngica, de que eu seria o último guardião, o morgado desses manes familiares, imperando sobre os demais desconhecidos nas fotografias, lares e penates menores, decerto, mas igualmente propiciadores e protectores, sobre os quais passo, em carícia, o meu dedo indicador, que se recurva fetal num círculo de pertença e comunhão silenciosa e arrebatamento austero – compondo a companhia mais autêntica e leal que me resta, nesta misantropia em que se converteu uma forma de luto que mais ninguém entende.
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