Relembrando, surpreende-me o frio das manhãs de verão. Eu vinha de uma temporada de corridas populares com resultados muito díspares (desde a displicência à angústia de não terminar à agonia física às descargas de adrenalina), com muitas, muitas meias-maratonas a par com os meus companheiros de corrida (a fase mais democrática da minha vida, tirando o inferno do serviço militar).
Um dia o Emídio, companheiro de corridas mais velho e muito mais experimentado, desafiou o grupo para uma Maratona, e a resposta foi desanimadora, ninguém queria ir. Quis eu. Por uma vez na vida treinei regularmente, todas as manhãs 10 Km, aos fins de semana 16 / 20 Km, durante 4 meses.
Nos fins de semana era puro gozo, ia sozinho de Santos até Braço de Prata (na Era pré-Expo, bem entendido), com o único receio de que surgissem cães vadios (duas ou três vezes o receio confirmou-se); o regresso era particularmente belo, o Sol tímido pairando à minha esquerda num rio que a ponte não tinha ainda vindo violar. Terreno plano, o ar fresco e perfumado (bem e mal) a embalarem a minha cadência pesada.
Aos dias de semana era mais duro, saía de uma zona alta e o regresso era por isso inevitavelmente a subir. Descia a Marquês da Fronteira, atravessava o Bairro Azul, passava pelo Centro de Saúde de Sete Rios e percorria toda a Rua Conde de Almoster até chegar a Benfica, onde dava meia-volta, acompanhando o trânsito congestionado e a passagem dos comboios. Às vezes sentia um frio que não me abandonava senão quando iniciava a longa subida da Av. José Malhoa em direcção à Mesquita, antecipando a intensa provação da subida da Marquês da Fronteira. Voltava em pouco mais de uma hora.
Em geral não gostei da disciplina do treino, cresceu a ansiedade com uma lesão que me fizesse desperdiçar tudo aquilo e comecei a ter uma sensação de embrutecimento, como se aquela rotina estivesse a expulsar a minha disponibilidade para uma certa vida mental.
Fui escolhendo o equipamento mais leve que tinha, fui experimentando beber e comer enquanto corria, fui adensando expectativas quanto ao dia da prova, imaginei-me a perseverar e às vezes a desistir, imaginei a infinita subtileza que teria que ter para dosear o esforço e resistir a tentações. Perdi algum peso.
Talvez tenha sido inadvertidamente sábio nesta cumulação de antecipações, porque a prova surgiu num anticlímax, num dia de chuva ininterrupta e miudinha, um paraíso para a distância que nos aguardava. Com os nosso equipamentos super-leves ensopados parecíamos semi-nús, e isso fez-nos rir. Desejei boa sorte ao Emídio e não ouvi nenhum tiro de partida, só gente a começar a correr. Tive o pressentimento de que ia ser uma experiência única, e vinte anos depois continuo a achar que foi. Depois conto o resto.
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