Pouco depois dos 30 Km instalou-se uma forma de cansaço que eu nunca tinha experimentado, uma espécie de retardamento indolor. Os meus companheiros até aí começaram a tomar a dianteira e a fugirem à minha frente, mas ainda houve o tempo de o Emídio observar que era eu que estava a ficar mais lento. Não senti nada, estava anestesiado. Na última volta pelo Terreiro do Paço fiquei com a certeza de que não acabaria com eles, e que os Kms restantes seriam solitários. A respiração estava regular e o coração batia contido, e por isso estava tranquilo. Ia-me cruzando com gente que estava 500m, 800m, 1 Km, 2 Km atrás de mim, e isso contrabalançou o momentâneo desânimo dos 20 Km, com o alarido da chegada à meta dos vencedores, 22 Km à minha frente.
No Cais do Sodré aparece, como me tinha prometido, o meu amigo Miguel. Foi bom, muito bom, mas a presença dele descontraiu-me ainda mais e contribuiu para um notório declínio de ritmo. Como sabia que ele estava ali para me apoiar incondicionalmente fiquei também mais piegas, menos esforçado a buscar os abastecimentos e mais dependente da ajuda dele. Lembro-me de ele me passar duas ou três garrafinhas de água num abastecimento e eu as despejar nas pernas, que agora pareciam estar a aquecer descontroladamente. Não tinha sede, a chuva miudinha que há 3 horas caía ininterruptamente ajudava bastante.
Os primeiros 30 Km tinham sido peculiarmente serenos, eu que estava habituado a um ritmo mais intenso nos 10 / 12 Km e mesmo nas meias-maratonas (personal best de 1h38 na Meia de Lisboa, falseado pelo desnível que sempre favoreceu gente pesada como eu).
Jerónimos / Dafundo / Terreiro do Paço / Dafundo / Terreiro do Paço, clop, clop, clop, uma manhã de trabalho à chuva e ao vento, como observou jocosamente um do grupo, o entorpecimento progressivo do aquecimento estabilizando a parte cardio-respiratória, e eu lembrando-me das lendas do "Muro" que surgiria lá para o final (lendas mesmo). O frio inicial das roupas ligeiríssimas perdera-se no primeiro quilómetro, e o meu receio dos raios de sol (longa experiência de calvários ao Sol) não se confirmou.
Passada a ponte um novo ânimo apoderou-se de mim. Um breve cálculo mental apontava para a quebra da barreira das 4 horas, com a qual não me preocupei enquanto não a julguei atingível. Agora finalmente acelerei, para grande alegria do Miguel, que me incentivava e mais tarde me confessou ter ficado inicialmente com a impressão que eu desistiria (já que lhe surgira sózinho no Cais do Sodré). Passei por senhoras idosas, homens ventripotentes e sexagenários, lembro-me de um brasileiro corpulento, peludo e de rabo-de-cavalo, numa passada paquidérmica que parecia inteiramente inadequada à distância (teria feito batota?).
Acelero ainda mais no quilómetro final e chego abaixo das quatro horas. Colocam-me uma medalha e finalmente paro. Sinto algo estranho nas pernas e tenho a maior dificuldade para subir um passeio. Dizem-me para evitar deitar-me e é isso que faço, pesadamente e sem pensar; nada me dói mas estou exausto, de uma forma inexplicável. Olho para as pernas e os músculos ondulam como cordas, incontrolavelmente, como nunca tinha sucedido ou voltou a acontecer. Assusto-me e desisto de voltar a casa no meu carro, pedindo boleia ao Miguel.
Chego a casa e os meus pais, condoídos com o meu ar exausto, ajudam-me a tirar os sapatos e avanço para o duche. Vou dormir e algumas horas depois acordo com as pernas ainda aos espasmos. Só dois dias depois tenho coragem para ir buscar o automóvel a Belém.
Faz hoje 20 anos.
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