Deus devia ter-nos aperfeiçoado. Devia-nos ter permitido um alimento de coisas esparsas e minúsculas que, agregadas, compusessem um banquete invisível; devia-nos ter permitido saborearmos a própria invisibilidade, devia ter-nos propiciado um sentido capaz de colher, na totalidade das coisas, o sentido e valor das coisas que, por estarem dispersas, parecem não ter presença – ou valor nenhum, quando ocasionalmente nos apercebemos da presença penumbrosa delas.
Deus devia ter-nos dotado daquelas barbas dos cetáceos que escumam oceanos inteiros em busca das massas invisíveis do plâncton – para com elas irmos cumulando alimento com essas pequenas coisas, com as insignificâncias, para irmos descobrindo um valor agregado, atomístico, dos vírus ao krill do plâncton das nossas micro-experiências.
Deus devia-nos ter ainda fornecido uns cílios vibráteis para, nas plantas dos pés, sentirmos o subtilíssimo relevo das pegadas de gente que se antecipou tanto a nós que se tornou invisível; para, nas palmas das mãos, sentirmos a infinitesimal deslocação de ar que reverbera ainda da passagem das pessoas ausentes; para, no olfacto, sentirmos ainda o hálito de pessoas que quiseram deixar-nos um legado que não é de palavras, mas é de calor e de gestos; para, no ouvido, surpreendermos os subtis cambiantes de silêncio que compõem a percepção dessa ausência.
Deus quis, não sei por que insondáveis desígnios, que privilegiássemos os olhos na aferição imediata, crua, dessa ausência, numa bizarra assimetria face à exuberância de sinais de que se compõe a presença – e numa bizarra truncagem da percepção holística que não enjeita nenhuma parte do alimento compósito que as barbas de cetáceos, se as tivéssemos, reteriam.
Ao menos que Deus nos desse o tempo para nos curarmos dessa falta de subtileza na captação do alimento que nos é oferecido, e nos permitisse vidas muito mais longas, menos cavalgadas, menos estridentes, menos deslumbradas, mais atentas, mais disponíveis, mais abertas à assimilação, à partilha, à edificação. Se ao menos tivéssemos tempo, estou certo de que sentiríamos algures esses cílios vibráteis eclodirem, fornecendo-nos dados, alimento, sentidos, experiências, vida. Poderíamos mergulhar em sondagens fundas em nós mesmos, até ao reino do silêncio em que o marulhar deixa de se ouvir e o excesso de luz deixa de nos cegar. Poderíamos, quem sabe, perceber o inverso do que julgamos captar quando andamos ao vento e no alarido. Descobriríamos porventura outras coisas bem melhores do que as que nos são oferecidas pela estridência e pelo brilho fátuos. Teríamos outros valores.
Mas Deus não nos fez perfeitos e não nos deu tempo para o remediarmos.
Escrevo isto garrotado por uma revolta contra Deus, contra a ausência de tempo e contra mim mesmo.
Eu sei, mãe, que com a tua mansidão discreta povoaste a minha vida de pequenos átomos exemplares, que eu deveria ter sorvido incansavelmente para com eles compor o essencial do meu alimento, do meu carácter. Pensei nisso a tempo e esforcei-me, mas não tive tempo.
Andava alegremente espadeirando mares distantes e não ouvi nada do teu afastamento, surdo com o barulho da minha própria cauda, cego com a minha vaidade aquária.
Agora sinto-me um cetáceo triste, momentaneamente sem as barbas e sem o fôlego para ir buscar todo o outro alimento que espraiarás por um outro oceano, o da memória. Mas hei-de ir, porque não passo sem essa sabedoria silenciosa, quase invisível, feita de uma cumulação de pequenos gestos, de uma subtil ausência de tensões, de uma harmonia que quase nada afirma mas que se sente, e se pisa, e se cheira e se ouve, em especial quando recobramos algum tempo para negarmos essa imperfeição que cruelmente nos foi legada.
Penso nisso e adivinho tenuemente, fugazmente, o alimento de síntese que é o exemplo de vida que um bem-aventurado nos pode fornecer.
Não sei de Deus ou do tempo; mas sei que me rendo a isso, e que essa rendição é tudo o que eu quero ser.
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