Português-diletante


Hoje conheci um grand seigneur regressado das sombras do tempo. De uma gentileza insuperável, o sorriso afivelado sobre o andar trôpego e aquele ar vagamente embaraçado do surdo, e no entanto atento aos detalhes do país que abandonou há 60 anos. Sentenciou, com a bonomia do apaziguamento crepuscular, sobre coisas de outrora que o país esqueceu mas que para ele permanecem congeladas na memória; evocou um batalhão de mortos que um dia vivenciaram o mundo académico e cívico do país, e contrastou-os singularmente com a entropia moral de uma pseudo-elite laxista e acabrunhada que ele revisita condoído.
Silenciou um longo currículo que eu lhe conheço e confirmou apenas ter aboletado muitos grandes quando andaram foragidos, sem que nenhum lhe tenha agradecido os favores. Parece preferir que seja assim, como se receasse que uma inesperada manifestação de gratidão fosse perturbar o seu pessimismo antropológico. 
Provámos um vinho e ele recordou que o pai era produtor, "do tempo em que não se achava que isto fosse uma ciência"; era um agricultor-diletante, que só se apercebia da existência de vinho quando ele já estava nos tonéis – informa-me.
E pouco mais diz. Ouve, sobretudo, munido daquela sabedoria que prefere ouvir a falar, e ler a escrever, uma sabedoria antiga mas hoje algo abandonada em favor da gratificação fátua da ostentação confessional.
Ele conheceu, e conservou amorosamente em vinhetas de nomes e situações, um Portugal que eu não conheci. Por isso permite-se ser patriota de uma forma invulgarmente intensa, como o não são, como o não podem ser, aqueles que vão experimentando, nas provações quotidianas, no cultivo das aparências, no servilismo inato, o peso e a inércia de se ser português, sem distanciamento que permita uma captura de imagens imunes ao devir, imagens que possam ser cultivadas fora do círculo da trivialidade do hábito e da mordacidade que molemente o sacode e o torna mais suportável.
Penso: um português-diletante, um português que pode dar-se ao luxo de gostar da condição de ser português porque verdadeiramente há 60 anos que não precisa dela, e só pensa nela quando se predispõe a aplicar o filtro da saudade aos clichés das suas memórias.
Sim, também eu prefiro o vinho sem ciência, e também as cerejas mais macias, menos carnudas e rijas – nunca tinha pensado nisso, é preciso a serenidade de um bom observador, de um observador batido, para nos interpelar neste plano tão íntimo e genuíno do que há de mutável e de constante nas nossas preferências.

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