Lendo a história das duas mulheres em Malomil ocorre-me o conceito de "duty to mitigate", genericamente o dever da vítima de superar a situação lesiva e desenvolver esforços razoáveis para repará-la (mesmo que só parcialmente), sob pena de se considerar que empola a extensão da sua vitimização e atenua a responsabilidade do lesante.
Quando pensamos no que há de especialmente grave no homicídio, cedo reconhecemos que isso se prende com a irrecuperabilidade, a insusceptibilidade definitiva de superação e de reconstituição espontânea de factores de atenuação do impacto da lesão. Retirar a vida confere ao perpetrador uma potência demiúrgica, deixa-lhe nas mãos a condição inicial de tudo, rouba tudo à vítima.
Por comparação, em todas as outras agressões, por mais horríficas que sejam, por mais mutiladoras e permanentemente marcantes que se tornem, subsiste a vida da vítima, e a vida tem um potencial de transcendência e de auto-regeneração que habilita até as mais frágeis vítimas a recobrarem, com a passagem do tempo, um sentido para as suas vidas e um norte para os seus sentimentos. Um agressor que não mata não rouba a identidade à vítima, e é responsabilidade da vítima levar a sua vida por diante – sem se escravizar perpetuamente à potência maléfica que ditou o momento da agressão.
Mesmo o elemento costumeiro da moral ("mores") aponta no mesmo sentido. O alarde perpétuo da vitimização faz perder a solidariedade e torna-se incómodo ou grotesco, porque pura e simplesmente a empatia em que assenta o cimento da moral partilhada exige algum nivelamento entre aquele que exprime o seu sofrimento e aquele que tenta percebê-lo simpaticamente. O sofrimento moral prolongado pode ser genuíno; a solicitude que se dispõe a ampará-lo é que é finita – pelo que mesmo aquele que desejaria não continuar a viver normalmente, que desejaria viver à sombra dos seus estigmas, que desejaria colher os frutos da compaixão alheia, que sonharia com um "alvará de vítima profissional", não tem outro remédio que não o de sacudir o torpor da auto-comiseração, calar a lamúria ostensiva e retomar o caminho da existência.
Talvez uma divindade possa ter uma perspectiva mais misericordiosa para com o sofrimento, talvez que para ela seja muito dolorosa esta nossa progressiva indiferença que é, em partes iguais, frívola, animalesca e perigosa.
Mas para o comum dos mortais a experiência da vida não consente que se carregue perpetuamente o fardo das lágrimas alheias. Colectivamente tentamos prevenir; se isso falha reprimimos, castigamos, e buscamos reparar; mas depois, para o bem e para o mal, devolvemos à vítima a responsabilidade pelo seu futuro, e tentamos afastar-nos para vivermos com a alegria possível as nossas vidas.
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