Saudades do Ashram


O excesso de sofisticação intelectual é uma espécie de doença.
Nuns casos é cabotinismo mal digerido, a atitude do parvenu, do rastacouère que quer afirmar-se através da instalação de uma barragem de erudição (quando vejo alguém saltitar de nome de autor em nome de autor, adivinho a indigestão), e quer fazê-lo sem delongas, impressionando, esmagando, embasbacando. Isso raramente resulta, mas nada obsta a que a percepção de triunfo se insinue na clivagem com a realidade que o parvenu opera no seu espírito (mind the gap!)
Noutros casos é paranóia, a vontade de artilhar espinhos que permitam evitar aproximações e diálogos (um género assustador, reconheço). Tudo o que eu diga não fui eu que verdadeiramente o disse, foi o Dr. Topsius com toda a sua inatingível "auctoritas", e por isso se quer defrontá-lo e expor-se ao ridículo... mas deixe-me em paz (o Dr. Topsius já morreu? melhor, foi ele que o disse e não vale a pena incomodar-me).
Noutros ainda é leveza, é donjuanismo, é vontade de não lançar âncora e ir navegando enfunado numa cabotagem de ideias, de enseada em enseada conhecida, evitando a todo o transe adernar com a bolina do pensamento liberto.
Lembro-me disso com uma pontinha de saudade dos bons tempos em que, num outro avatar, envergava as vestes do porteiro de um Ashram onde a missão ostensiva era a de desaprender, a de abandonar à porta as sandálias da sofisticação para sentir nos pés as lajes frias da realidade; tentar reconstruir a partir dessas elementaridades umas proposições singelas que suscitassem empatias e formas de partilhar visões das coisas; fazer uma espécie de apostolado semi-pagão (cuidado com as enseadas!) que não deixasse escapar um só dos potenciais cultores da simplicidade.
Lembro-me ainda de que o mote era "uma reflexão austera sobre a espuma dos dias", o que ligava numa só frase duas referências Rive Gauche, a de Port-Royal e a de Boris Vian, que cito aqui apenas para procurar desdizer-me e para denunciar que foi na mesma margem do Sena que terão nascido os piores excessos da sofisticação intelectual (aí convertidos num tédio decadentista).
Que saudades! No Ashram acabei por ser cabotino, paranóico, leviano, traidor de mim mesmo, como todos somos – mas fiz bons amigos e partilhei com eles essa intenção, vagamente Zen, de acumular algum pecúlio de sabedoria a troco do abandono de um peculiozinho de erudição.
Pensando bem, tenho algum orgulho em tudo aquilo. Alguma simplicidade intelectual ficou, apesar de mim mesmo.

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