Reflexão husserliana a 30 mil pés

Um dos momentos mais conseguidos de Les Bienveillantes, de Jonathan Littell, é aquele em que a escrita começa a tornar-se incongruente, as frases perdem o ritmo, as referências turvam-se e contradizem-se, há alusões despropositadas – momento que se prolonga até percebermos que o narrador foi atingido e que a torrente verbal está a espelhar os seus estados de consciência, crescentemente vacilantes e apagados.
Lembrei-me disso por causa da minha viagem de hoje: mais de 11 horas de vôo para terras gaúchas e eu, exausto, a cabecear, a tentar ler coisas urgentes, a deixar cair os papéis por ter adormecido, a acordar sobressaltado, a olhar o tapete de nuvens lá em baixo, a acordar com o cheiro de comida, a acordar com um choro de criança, a acordar com um solavanco do avião, a acordar com dores no pescoço – e tudo sem me aperceber dos correspondentes deslizamentos para o sono.
Teria sido interessante ditar verbalmente o caudal dos meus estados de semi-consciência e debitá-los em escrita – talvez nem um único sujeito combinasse com o predicado, e talvez as leis da lógica brilhassem pela ausência.
E no entanto isso seria mais real do que esta análise fria e retrospectiva que não dá conta já da experiência tida, porque não consegue evocá-la (e, pela evocação, reconvocá-la).
Para isso é preciso arte – a arte que tem esse dom de recriar o que é verdadeiramente a vida, porque nos faz contemplar, através de uma linguagem mimética, aquilo que foi que nos aconteceu na sua dimensão ainda não-analisada, ou seja, a realidade do que aconteceu na própria experiência instantânes em que aconteceu.

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