Era uma topografia confusa para os meus olhos de criança, e a distância no tempo não ajuda a deslindar o caleidoscópio de referências.
Lembro-me do cheiro sulfúrico de um túnel longo e de eu sair com medo de que a locomotiva me ferisse com um último fôlego, solto por entre o rodado e as bielas. Pouco antes tínhamos atravessado, a medo, um Douro que fazia ainda cachões e eu estava intrigado porque podia jurar (mas quem acreditaria em mim?) que o comboio tinha invertido a marcha em Campanhã antes de se aventurar na escuridão do túnel rumo a São Bento.
Lembro-me de ir, silencioso e acanhado, pela mão do meu pai, visitar alguns antros da juventude dele – ele que abandonara tão jovem a Invicta. Na lembrança não pára de chover, recolhemo-nos num café com torradas muito gordurosas, eu incomodado com as botas molhadas, ele impaciente por ir abraçar os seus em Santa Catarina.
O tio Alfredo aparece-me de óculos com aros metálicos e um relógio futurista, uma bata imaculadamente branca, emergindo de uns fundos que cheiravam a químicos, a beladona, a gesso e a infusões. Era de uma doçura e de uma solicitude que me pareciam estranhas, eu que o via tão pouco e não percebia que era assim mesmo que devia ser.
Era bem mais pausado e atento do que o irmão, parecia ter todo o tempo do mundo, um tempo que se diria directamente roubado à tumultuada irrequietude do meu pai. Aquele, creio, puxara mais ao estilo sereno e perseverante do meu avô; este fervilhava surdamente no desterro existencial, vulcânico e sentencioso, que herdara da minha avó carioca.
Os irmãos serenavam ambos na presença dos dois velhinhos que eram já os meus avós, que me recebiam numa torrente opressiva de beijos e me chamavam de um modo estranho, abrindo as vogais e empregando o diminutivo, numa conjugação que conferia transitoriamente ao meu nome uma natureza esdrúxula, proparoxítona.
Lembro-me de pratos cheios de bolinhas que obstinadamente fugiam diante do meu garfo, lembro-me de um cheiro a roupa húmida, como se a chuva ensopasse permanentemente os tecidos, lembro-me do bafio a cevada queimada e leite talhado e do chão a ranger debaixo do linóleo, numa pensão caduca a poucos metros da Batalha.
As minhas tias ocupavam um lugar mais distante, e dos meus primos, não obstante a contemporaneidade, recordo brincadeiras banais e aquela territorialidade que policia a aproximação de crianças tímidas.
Depois voltava a ter o meu pai só para mim, e regressávamos, esgotada mais qualquer peregrinação por um café ou um livreiro, numa corrida descendente para São Bento, onde por qualquer milagre nunca perdíamos o Foguete.
Depois o ar ia secando, e na trepidação nocturna eu ia decorando os nomes das estações até entrever, em Cabo Ruivo, a chama da refinaria que para mim simbolizava o regresso a casa.
Depois os meus avós paternos foram, pareceu-me que em rápida sucessão, para o Prado do Repouso, e deixou de haver a mesma motivação para as visitas periódicas, para essas calorosas celebrações do chamamento do sangue entre familiares vivendo em cidades que na altura eu julgava muito distantes.
Um dia estava a assistir a Once Upon a Time in America e há uma cena em que Noodles (Robert de Niro) regressa, vergado pelo tempo, ao som de Yesterday. Passaram mais de 30 anos, ele regressa de onde partiu mas parece emergir do nada.
Não sei bem explicar porquê mas lembrei-me do tio Alfredo, surgindo numa epifania a explicar-me que há a distância, há o silêncio, mas há uma doçura que tudo recobre e redime, e há o tempo que tudo cura, porque as pessoas serenas envelhecem mas verdadeiramente não mudam.
Essa não é obviamente a mensagem do filme, mas dele retive apenas a imagem e o ambiente e o pretexto para a recriação simbólica.
Ele era, desde esses anos longínquos em que os meus avós tinham deixado de apertar-me contra as suas vestes húmidas, o patriarca da família. O meu tio Alfredo.
Partiu há pouco, e ficámos sem patriarca na família.
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