O abrigo dos livros (2)


Quando se sentia num aperto o nosso Paul McCartney (nosso, património mundial da minha geração) dizia apelar a uma figura maternal que solicitamente lhe sussurrava "deixa estar".
Velha sabedoria individualista, velha como o tempo; e no entanto os mais inconformados com esse escapismo "atomístico" sempre tentaram esboçar alternativas, "alívios contrafactuais" para onde pudesse deslizar o nosso ideal cívico – desafios a que recomeçássemos do zero, animados por alguma remanescente crença na solidariedade humana.
Nestes tempo sombrios vou oscilando entre os dois pólos, crente e descrente na reedificação colectiva. Caio mais frequentemente para o individualismo, como é visível; mas vou relendo, episodicamente, passagens de clássicos da utopia: In the Days of the Comet e The World Set Free, de H.G. Wells (para os quais fui recentemente arrastado pela leitura parcial de A Man of Parts, de David Lodge), o News from Nowhere de William Morris (remetendo-me mentalmente para o Erewhon de Samuel Butler), o Looking Backward de Edward Bellamy, o The Coming Race de Bulwer-Lytton, até o Rasselas do velho Dr. Johnson. Mais assiduamente volto ao batalhão dos clássicos, que vão das Repúblicas de Platão e de Cícero à Cidade de Deus de S. Agostinho, ao De Monarchia de Dante, à Utopia de Thomas More, à Cidade do Sol de Campanella e à Nova Atlantis de Francis Bacon.
São livros que me fazem pensar neste incansável optimismo civilizacional que leva tudo à sua frente. Talvez a utopia seja apenas o reconhecimento implícito de que a realidade é insuportável, e seja por isso tão escapista como o tudo resto; mas ao menos nas Atlântidas literárias estamos ainda todos juntos, ou mais juntos ainda, ou juntos de novo; somos ainda gregários, não sacrificámos ao nosso medo o que temos de mais profundo na nossa natureza humana; não deixámos estar.


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