Podemos reler o Tartufo de Molière (e depois dele o Don Juan) como um retrato e uma advertência contra o adensamento paranóico do fervor religioso.
Luís XIV viveu nas sombras de um passado recente de guerra religiosa e de convulsão subversiva; para a segunda arranjou Versailles e a sua recriação estilizada e esterilizada da sociabilidade cortesã; para a primeira encontrou bodes expiatórios, o Cardeal de Retz que imaginou a liderar uma nova horda de Frondeurs, depois os Jansenistas que julgou estarem a infectar de galicanismo e demagogia o baixo clero, finalmente os huguenotes, que de tolerados voltaram a perseguidos após a revogação do Édito de Nantes, em 1685 – tudo perante a reacção cautelosa, reservada, ocasionalmente refractária, dos mais devotos ultramontanos, que aplaudiam o fervor mas não aprovavam a repressão paranóica (que, sabiam-no, poderia erraticamente virar-se contra eles).
No fim, transparece a hipocrisia da ostentação da fé, o seu carácter icónico e ameaçador, a sua função puramente intimidativa e política, a sua base de espectacularidade atordoadora – precisamente aquilo que Molière nos faz detectar no Tartufo, e que, uma vez percebido e denunciado, conduzirá os magistrados do Parlement de Paris em direcção a um horizonte revolucionário, num processo dialéctico perfeitamente pendular.
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