Reflexões Tolstoianas


Cada um constrói o mundo e os valores à sua dimensão e de acordo com a sua imposição de congruência circundante (aquilo que os especialistas designam por "dissonância cognitiva"). Atribui-se a Sigmund Freud a observação de que em matéria de auto-justificação somos todos uns génios, e raramente a realidade, a objectividade, interferem na arquitectura do egocentrismo. Deve ter a ver com uma qualquer aptidão darwinista, com uma pulsão elementar de auto-preservação, ou com o alarido da gratificação a pôr em surdina o grande desafio que para cada um de nós constitui aquilo que, sendo-nos externo, não criámos, não explicamos e não dominamos. Relemos tudo à nossa imagem, reedificamos tudo de acordo com os desígnios da nossa pacificação interna, veneramos Protágoras e Sartre mesmo quando não sabemos que os estamos a ilustrar.
Lembrei-me disso nos últimos dias por me ter cruzado a grande ritmo com uma multiplicidade de aberrações, daquelas que nos levam a concluir que as pessoas não se enxergam: desde o sujeito pretensioso que debita ao jantar toda a sua ciência vinícola em grandes afectações de "savoir vivre" quando não se apercebeu da grosseria do seu atraso à chegada, passando pelo cidadão que discute correcção gramatical e ortográfica enquanto interpola no discurso um "devem de" ocasional, culminando na arenga do «bom» anfitrião que tudo ensina em matéria de "hors d'oeuvres" mas não tem a sensibilidade de se calar e deixar falar os convidados, ou na tirada patriótica daquele que se multiplica em calinadas sobre história pátria.
O mundo está cheio disso; diria até que de certa maneira o mundo é isso (não me colocando eu de fora). O mundo é, em larga medida, ou quiçá na essência, a representação com sentido de uma realidade sem sentido. O sentido pode ser uma imposição, uma violência, mas é ele que cimenta as convicções e com isso propicia que alguma coisa se faça. Talvez só nos possamos realizar através da alienação – especificamente através da alienação romântica, a mais dependente da vontade e do arrebatamento –, porque não suportaríamos encarar de frente a realidade que nos circunda, e a realidade que somos.
Cada um de nós procura ser um Deus para si mesmo; se pensarmos bem, é por isso que conferimos tantos traços antropomórficos a Deus, não obstante a repetida advertência contra isso. O que me faz regressar a uma observação de Rica nas Lettres Persanes, de que "se os triângulos tivessem um Deus, atribuir-lhe-iam três lados". Dialogarmos entre nós é as mais das vezes um exercício de ilusão bem-intencionada, porque quase nada se comunica ou se aprende por partilha; em suma, para que a existência nos seja suportável, para que não percamos o equilíbrio da auto-estima, raramente será conveniente, ou sequer nos será consentido, que saiamos de dentro de nós.

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