Portela, Março de 2012


Pode ser que o ambiente do Aeroporto, soturno, tenha ajudado; mas ali, entre malas e cafés, num momento morto como os que habitualmente antecedem os voos nocturnos, resolvemos aproveitar para umas reflexões mais íntimas do que as costumeiras.
Dois velhos lobos de mar contando as rugas como se fossem marcos na longa estrada para a sensatez, como se fossem tatuagens a assinalar passagens; dois velhos e novos amigos, recuando memórias até ao tempo em que não se conheciam, vergados um pouco ao polimento dos gestos sem energia, falando de paternidades tardias, de sonhos profissionais, de frustrações, de intimações de mortalidade.
Erguemo-nos e passeámos, entre correntes de ar, partilhando amabilidades e maledicências, de vez em quando pausando para reconfirmar, uma vez ainda, a hora e o portão. Falámos da distância e do incómodo das viagens, da universalidade dos problemas, dos sucessos dele e da minha vontade de partir, dos insucessos dele e da minha insatisfação permanente.
Falámos das nossas grilhetas douradas, da inautenticidade que é a idade adulta, da alienação que é o nosso esforço, da farsa que são os nossos papéis, da necessidade de revermos as nossas vidas, os nossos compromissos, para darmos algum espaço ao florescimento das nossas vocações, submersas nas neuroses do quotidiano e na surdez da rotina, para podermos gozar os canteiros hedónicos que ladeiam a estrada, para podermos amar a vida dos que amamos enquanto é a vida, e não a memória, que nos une a eles.
Prometemos voltar um dia a falar-nos assim. Pode ser já em Maio, quem sabe?
Levei-o à via verde da executiva, demos um abraço e ele, vaidoso que é, incaracteristicamente reservou ainda uns segundos a elencar dívidas para comigo – com isso encerrando o momento de intimidade.
Voltei para casa a ouvir Kurt Elling por entre avenidas vazias, a pensar na razão pela qual a vida nos nega tão persistentemente as ocasiões para pensarmos em conjunto com os nossos amigos, e porque é que a própria amizade tem tão poucas ocasiões para ser cultivada.
Ballad of the Sad Young Men by Kurt Elling on Grooveshark

1 comentário:

  1. texto belíssimo.
    (e provavelmente nem o teu amigo sabe que tem essa sorte, a de pensares nisto por causa dele)

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