Dia do Pai


(Re)vejo-os a preto e branco, crianças inodoras e emudecidas fitando atentamente uma câmara – os medos, os sonhos, as alegrias e as impiedades muito tenuemente associadas, no meu espírito, àquele turbilhão de vida congelado e eternizado, eu que quase juraria ouvir ainda o eco chilreante na topografia daqueles sorrisos imaculados.
Quando nos reencontrámos muitos traziam essas fotografias, como se quisessem comprovar as diferenças; eu dispensei isso, sabendo de antemão o impacto que causaria a profunda metamorfose dessas crisálidas casualmente agregadas sobre a gravilha ensopada das manhãs de Outono, agora, tantos anos volvidos, adensadas com o peso de trajectórias pessoais muito alongadas e centrífugas, despida a bata e o uniforme, adquiridos os vícios, as manias e as máscaras, sulcados os primeiros vales naquela topografia facial.
Lembro-me do espanto que muitos manifestaram de reencontrarem o seu colega «marrão», uma criança tímida e esquiva, transformado num homenzarrão de voz cava e barba rija, muito físico tanto na sua ironia truculenta como no seu afecto, muito ágil nos seus passos, inesperadamente irreverente.
Eu espantei-me também com muitos, mas mais pelos seus destinos do que pelas aparências – como algumas promessas seguras tinham sido relegadas pela Roda da Fortuna, e outros tinham vencido contra a improbabilidade (dois deles estão entre os cem mais ricos do país); como tantos tinham acabado comunistas (triste geração, a minha) e uma mão-cheia ficara com os miolos «torrados» com a droga; como tantos tinham feito das suas vidas experiências muito significativas e interessantes – cientistas, músicos, pintores, líderes cívicos – sem soçobrarem ignobilmente na servidão do vil metal; como em quase todos tinha ficado viva a chama da excelência e da superação, uma chama que se ateia na infância – ou nunca.
Lembrei-me deles também porque o Sol regressou, e porque quando os vejo nas fotos a preto e branco sei imediatamente que o que lhes falta é o calor do Sol, aquele calor que ainda é mais tórrido quando se é criança e se passa horas a fio em corridas sem destino sobre a gravilha ensopada.

(Junho 2007)

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