É curioso como o direito internacional público não evolui, e aparentemente pouco incorpora da sabedoria civilizacional acumulada – prestando-se à reiteração infindável de disparates; e, o que é pior, os mesmos disparates. Por contraste, o direito privado revela uma invulgar agilidade na sua aprendizagem adaptativa.
Pelo que se passa com o endividamento entre Estados, torna-se claro que não há limite à ingerência dos credores – e isto apesar de as duas conflagrações mundiais do século XX terem evidenciado a conveniência, se não mesmo a absoluta necessidade, de travar uma tal ingerência e de evitar a subalternização, a paralisação ou o empobrecimento dos devedores a que aquela frequentemente conduz.
No direito privado, a secular demonização do "agiota", não raro alimentada e liderada por políticos, conjugada com a inteligência de que a relação de crédito, sendo mutuamente proveitosa, não deve terminar no colapso da simbiose creditícia que constituiria o esmagamento dos devedores, conduziu a uma limitação drástica dos poderes dos credores, e estes essencialmente confinados à vigilância do património que garanta o crédito (gravitando em torno da actio pauliana).
A insolvência deu outrora lugar à servidão por dívidas, ao banimento cívico, a punições corporais, a represálias sobre famílias e grupos, ou mesmo a retaliações cruéis como as simbolizadas no Mercador de Veneza (a libra de carne do devedor oferecida para remissão da dívida).
A reacção é em larga medida irracional, porque dificulta nuns casos, e nos outros impede, o pagamento da dívida por aquele devedor que ela em primeira linha atinge. Em compensação o efeito preventivo pode ser máximo: um devedor esmagado, empobrecido, reduzido à servidão (ele e os seus dependentes), é um sinal de alerta inequívoco, um potente dissuasor para todos os demais devedores, actuais ou potenciais.
O arco que conduz da Lex Poetelia Papiria (e do beneficium competentiae e da cessio bonorum) aos nossos dias não representa apenas o esforço humanizador de repúdio da prisão ou servidão por dívidas ou a compaixão pelos devedores – é também, insiste-se, o reconhecimento de que o melhor garante do cumprimento é ainda o devedor inadimplente, mesmo quando ele se encontre insolvente, pelo que nenhum efeito de prevenção geral contra o endividamento frívolo ultrapassa o interesse de salvar a relação de crédito, coisa que normalmente reclamará a iniciativa das partes originalmente presentes – salvo quando exista malícia fraudulenta, a reclamar reacção punitiva.
Estranho que o direito internacional, não obstante tanta norma a estabelecer algo de similar àquilo que há 2300 anos se iniciou com a Lex Poetelia, mantenha ainda em aberto a possibilidade de humilhação e menorização dos devedores às mãos dos credores. Razão têm aqueles que insistem que subsiste, no núcleo do Direito Internacional Público, um eixo gravitacional que não emergiu ainda, e porventura nunca emergirá, do "estado de natureza" hobbesiano.
Sem comentários:
Enviar um comentário