Aquilo que é proibido ao historiador sério é aquilo que praticamos constantemente na nossa memória, e que é convertermos o passado numa versão do presente, com total anacronismo. Com o privilégio de conhecermos o desfecho e de através dele elaborarmos uma retrospectiva, aditamos ao passado uma inteligibilidade que ele não teve (como presente), e damos-lhe uma intencionalidade, conferimos-lhe uma funcionalidade teleológica, a qual acaba por erradicar do passado o sentimento mais vivo no presente (que foi): a incerteza, a percepção da fragilidade, da contingência, do risco.
Penso nisso quando me lembro das antevésperas da guerra civil, que atravessei adolescente; e lembro que de súbito a aceleração da História me fez sair de mim e submergir num devir vagamente colectivo e nebuloso, em que tudo vacilava e algo submergia; tempos em que a contemplação cedia perante a acção, e em que tudo se ousava, tudo se arriscava; tempos físicos em que o esforço e a destreza se gratificavam por eles mesmos, na sua pura exterioridade, sem interpelações sobre o sentido da vida e sem rebates sobre o sentido do esforço.
Represento-me mais feliz do que devo ter sido, como se tivesse avançado em segurança pelo meio de muitas vielas que dariam, suponho agora, para lado nenhum - como deram.
Ter chegado aqui faz de mim, por contraste com esse fundo imobilizado na memória, uma espécie de viajante com sorte, que não deixa de chegar ao destino apesar de ter tropeçado mil vezes, de se ter perdido outras tantas, e ter tido interrupções de fé ao longo do caminho. Uma espécie de herói irreverente, que rompe com códigos de honra e pudor e com normas de hesitação e medo, e no fim chega e triunfa por mero acaso, sem ter outro mérito do que o do fado e da ousadia. Exactamente como numa epopeia épica.
Não foi nada assim.
Contemplo as paredes pintadas em que me encostava nesses vendavais distantes e vem-me à memória o grande vazio que era o futuro e a minha absoluta falta de vontade de que esse futuro viesse, e a minha total inaptidão para fazer com que esse futuro acontecesse, sequer.
Nem sorte lhe chamo: foi algo de misterioso, algo de absolutamente fora de mim, que me trouxe, sem apelos nem contemplações, até aqui.
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