Saudades


Às vezes lembro-me de como me refastelava no cadeirão de couro e absorvia lentamente as frases etéreas e evocativas de Pierre Loti, no seu Pêcheur d'Islande, o único livro que li dele.
Nada havia que contrastasse mais com aquele casulo sombrio e silencioso em que lia do que as imagens do mar bretão, varrido por um vento simbolicamente impiedoso; imagens que saltavam das linhas que eu ia percorrendo, na moleza sensual do viajante imaginário, a consolar-se no seu conforto daquelas alterosas explosões de maresia, o dedo providencial de um tritão irado a reclamar o seu império trágico sobre a gente humilde.
Pareceu-me visualizá-lo, mais ou menos pela mesma época da leitura furtiva, nas imagens de tempestade de A Filha de Ryan (o Ring of Kerry a substituir-se no meu espírito à Bretanha); lembrei-me dele numa passagem por Hendaia, onde sabia que o chamamento do mar o tinha fixado para sempre; lembrei-me dele ao ler algumas passagens de Venceslau de Morais e ao ver alguns quadros de Gauguin – em associações mais ou menos livres.
Muito mais tarde defrontei o assalto da ventania bretã, sob o pretexto ostensivo de topar alguns faróis em Porspoder, e pernoitando em Saint-Malo foi nas minhas velhas leituras de Loti que eu pensei (talvez confundidas já, no meu espírito cansado, com as leituras muito anteriores de Henry de Monfreid).
Nunca mais tive o vagar para leituras tão lentas e tão proveitosas, no sentido de delas espremer tanto sumo da evocação e da sinestesia. Hoje regresso ao recanto sombrio das minhas leituras juvenis e o vento acalmou, o silêncio triunfou e só resta o cheiro inesquecível da poltrona de couro. Pressinto alguma alegoria nisto.

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