Não me despeço assim tanto


A humanidade talvez não se divida em duas categorias, a dos que dividem e a dos que não dividem a humanidade em duas categorias – como ironizava Benjamin Franklin. Mas é verdade que a humanidade oscila numa pulsão dialéctica entre pólos emotivos, entre o lado solar daqueles que descobrem redenção e regeneração nas mais ínfimas possibilidades e o lado lunar daqueles que soçobram no desespero e na constatação do absurdo (sendo que uns e outros podem ser os mesmos).
Já era assim nos mais clássicos poemas didácticos, no espectro que conduz da escatologia do De rerum natura, de Lucrécio, à soteriologia das Geórgicas, de Virgílio. Os dois filósofos-poetas (e antes deles Teócrito e Hesíodo) seguem o rumo exaltado das suas visões do mundo, aparentemente alicerçadas na mesma transparente concentração no real e na mesma intenção pragmática e edificadora. Um termina na peste de Atenas; mas o outro, Virgílio, remata com uma peripeteia de ressurreição órfica, as abelhas irrompendo inesperadas das carcaças corruptas do holocausto.
Eu tenho momentos assim, de ambos os desfechos. Nuns dias despeço-me sem esperança, vencido pelo cansaço e pela errância dos trabalhos e dos dias; noutros dias não me despeço, apenas me ausento no sonho idílico da realização, da gratificação, da esperança; apenas me ausentando sem verdadeiramente me afastar.
Talvez a humanidade se componha antes de duas categorias não-divididas, uma mescla não-analisável de luz e sombra, uma realidade pendular na qual cada passo pode parecer uma despedida, pode querer ser uma despedida, mas não passa de uma transição para um retorno.
Eu votaria Virgílio, se de votação se tratasse. A verdadeira edificação provém da consciência de que, como indivíduos, podemos decair da expiação para a peste, sem retorno; mas que, como espécie, e cada um como portador em si das marcas dessa espécie, somos dotados de um reequilíbrio colectivo que, prometendo-nos o resgate, nos incentiva a prosseguirmos (ou talvez não se trate senão da circunstância de hoje ter acordado hegeliano).

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